31 janeiro, 2017

A ÚNICA certeza


Cheiro de café. Taí uma coisa de que sentirei falta, penso, enquanto saboreio um expresso suave, quase amanteigado, e espero o pão esquentar no torrador. Sentirei falta quando aqui eu já não estiver. Parece estranho, mas pensar na morte não me assusta. Tem se tornado corriqueiro, na verdade. Especialmente em momentos de pequenas alegrias. Sinto o aroma tomar conta da cozinha nesse fim de tarde de segunda, quase fevereiro, e fecho os olhos, tentando guardar esse prazer em algum lugar permanente da memória.

Assim faço quando sinto o vento no rosto, o sol depois de uma semana cinzenta, a água da piscina onde nado até ficar cansada, o corpo relaxado ao sair do banho depois de uma aula de taekwondo. Nada premeditado. O pensamento vem. Eu deixo. É como uma brisa, que passa de repente sem pesar, e a congelo no tempo, aqui, buscando tradução.

Tenho, cá pra mim, que vou ser daquelas que duram muito. Talvez por ter uma calma prevalecente, um otimismo persistente, uma sombra com a qual procuro andar junto, olhar de frente, conflitar, perdoar, além de um talento para passar (sem despencar) por adversidades (eu deveria virar palestrante... Não fosse a timidez, seria um ganha-pão). Apesar de canceriana, tenho horror a remoer o passado, o que me livra de somatizações decorrentes. Prefiro a praticidade da ascendência escorpiana decidida a gozar a vida - o que também pode me dar uns anos a mais de trajetória terráquea. Mais determinada que indecisa, apesar de carente de certa “agilidade”, já que o tempo, amores, não é bonzinho e não sabemos “o que” ou “quem” vamos encontrar na próxima esquina... Talvez "ela", a morte, que também pode me surpreender num tropeço qualquer – tão inexplicável e incompreensível já se mostrou em situações diversas, pertinho de mim, em cheio na alma. E é por deixá-la rondar insights, cavidades e margens do meu pensamento que faço de sua certeza um impulso nesse sopro de brevidade que é... a vida.

Penso que a morte é presença constante a cada vez que saio de moto – e me sinto mais segura dos meus atos. Quando consigo me expressar e imagino que uma palavra dita ou escrita possa ter tocado alguém. Quando ponho meus filhos pra dormir e escuto suas respirações profundas – e me encho de gratidão, desejando e orando para que tenham sono tranquilo, uma vida de sonhos realizados. Quando os vejo sendo legais um com o outro e com os outros, deixando transparecer o amor que sentem – e me sinto forte, digna de ser deles mãe, grata (de novo, sempre) por tê-los como missão que engrandece minha existência e me faz querer ser melhor, apenas como pessoa.

Deixo que ela venha visitar meus pensamentos, mas neles não pairam, por exemplo, como ela virá para mim. Não assim. Não se trata de morbidez, mas de tentar trazer para a serenidade sua iminência imprevisível. Uma consciência. Não querer ignorá-la. Saber com ela conviver. Não temo a minha morte, mas a minha ausência aos que ficarem. Porque sei o quanto dói não ter a presença física de quem se ama por perto, o quanto a saudade aperta o peito e passa a ser pele, parte inseparável, poro e, então, cicatriz – troféu de quem teve o privilégio de amar verdadeiramente nessa breve passagem.

A intensidade da vida faz a morte menos temida. Assim como o coração em paz. O amor, não o dinheiro. A presença, não a distância. A palavra, não o silêncio. O sentimento.

*Desde que o perdão e o amor se encontraram, três dias antes de sua partida, numa breve e sincera conversa que me fez feliz como não me lembrava mais, me pergunto se é possível sentir a proximidade da morte. Não sei. Não a sinto. Só penso, mas não desejo. Tenho muito ainda a amar e viver, fazer a vida valer tanto a pena, em cada detalhe e momento. Por você. Para ver grandes os meus pequenos. Por todos aqui, agora. Por mim e tanta gente que se permitiu viver o luto, no seu tempo, até que ele se transformasse em força viva, amor a ser doado, vida a ser cuidada, querida, desejada, afeita a afetos – e impulsionada pela única certeza que temos.

3 comentários:

Anônimo disse...

Lindo e real...mana, sou sua fã, com ou sem café!!!

Anônimo disse...

Uma pérola minha amiga Tati, Parabéns...E tenho certeza q viveras muito e verás teus filhos cuidarem de ti, beijos.Lêo

Anônimo disse...

ao ler... pude sentir a iminência imprevisível do sabor que sentirei de um café sendo passado com paciência e amor... pude sentir o cheiro da vida ao também pensar na morte e atualizar um luto que até a pouco era passado...
pude respirar e admirar sua forma enquanto dancei solo tal e seu (não mais só seu) conteúdo.
me tocou.
beijo Tatys