27 janeiro, 2017

Dicotomia DOS TEMPOS



Em tempos de amores líquidos, prazeres virtuais, sorrisos que duram o clique de uma selfie, espiritualidade elevada até que o calo seja apertado, sabedoria encerrada em frases feitas (de autorias duvidosas), em que Pondé se torna pop, (Marco Antonio) Villa amado por senhoras em salões de beleza, Karnal é guru bonitão, em que previsões/catástrofes/perigos iminentes (que nunca acontecem) são disseminados por milhares em mensagens via whatsapp, em que feministas são todas chatas, arte urbana considerada sujeira, Joven Pan suprassumo da boa informação, em que quem não é de direita só pode ser de esquerda (e vice-versa), fronteiras que se erguem, extremismos que encerram diálogos, monólogos terapêuticos em rede social, em que likes ditam surtos de depressão, ritalina é
prescrita a rodo a crianças, professores (e muitos pais) preferem a praticidade ao desafio, em que “toda criança tem algum déficit de atenção hoje em dia”, pais trabalham tanto que não sabem o que sonharam seus filhos na noite passada, em que o passado é usado como “exemplo”, em que professor de matemática dá aula de biologia, em que o salário nunca mais deu para o mês, em que benefícios são atrasados por empresas e prefeituras, em que a estabilidade se tornou frágil, qualquer emprego é louvado com graça, milagre é conseguir um trabalho, luxo é comprar requeijão, peito de peru nunca mais, felicidade é ter mistura toda semana, em que acríticos e puxa-sacos valem mais que competentes, em que experientes são preteridos a vagas e inexperientes não têm chance de ganharem experiência, em que decote é coisa de puta, manuais ditam comportamentos e aparência, gay aceitável é o que não dá pinta, em que a capacidade de se surpreender vem perdendo lugar para a apatia, tempos em que não se vê mais aquele que está ao seu lado, mas não se perde o que está sendo postado e curtido... sim, nesse tempo que passa alheio ao desperdício de tanta vida, ainda é possível, há espaço amplo e aberto para colorir de criatividade a dificuldade, para se alegrar com atitudes amorosas como deixar livros em bancos de metrô, roupas de frio a moradores de rua, sorriso e bom dia para quem vem em direção oposta na mesma e
estreita calçada, para conhecer Zygmunt Bauman e se aperceber no limiar no despenhadeiro intelectual, pesquisar e se descobrir trouxa ao ver como a manipulação do pensamento coletivo acontece há séculos com o uso do lado sombrio de quem aprendeu a psicanálise, há espaço para descobrir Darwin, Carl Sagan, Yogananda, acreditar na redenção do Darth Vader e se apaixonar pelo Qi Jon Gin, para brincar de entender Van Gogh, Miró, o novo desenho do seu filho, tentar aprender a dança do grupo coreano que a filha idolatra, perceber que a pessoa que limpa sua casa precisa de um abraço, que um abraço pode ser uma despedida inesperada, para dizer eu te amo olhando no olho, para acalorar uma discussão tête-à-tête e acabar com um brinde à divergência, é tempo para ver a marcha das mulheres mais populosa que a posse de Trump, de limpar gavetas da memória, tentar um novo esporte e engavetar remédios para dormir, para estar presente sem olhar no relógio, abençoar o passado e não se obrigar a passar panos de prato, a ser feliz gourmetizando legumes e verduras da horta do bairro, aprendendo receitas novas e aceitando pequenos ajudantes na função, tempo de acreditar que o emprego vem, que o talento prevalece, que a timidez pode ser aliada, que a solidão também é amiga, que amigo bom é aquele que sente e se importa, tempo de apreciar a leveza do perdão, trocar o amargor pelo refresco de beber com o irmão, de suar e sorrir, crer e rezar, praticar o certo sem pestanejar, o bem sem se gabar, o equilíbrio após muito se esforçar, acreditar em si e literalmente abrir mão – do celular, do comodismo, do ego e de esperar – para pegar outra, beijar e andar junto, sem pensar em errar ou acertar.


https://www.youtube.com/watch?v=qiKMmrG1ZKU

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