27 abril, 2025

Psicanálise PARA QUEM?

 



 

Há quem acredite que Psicanálise e Psicologia são a mesma coisa. As diferenças são muitas, porém. Ambas passaram a se desenvolver no final do século 19, visando à compreensão de processos mentais relacionados ao comportamento e à saúde, mas cada uma a partir de métodos e objetivos distintos. São troncos de árvores enormes, com ramificações nas quais até mesmo as finalidades se diferenciam.

Por exemplo, nem todo psicólogo precisa trabalhar em clínica, com psicoterapia (há outras áreas de atuação), mas entre os que atuam, as abordagens podem ser várias – o que significa linhas de pensamento e visões diferentes, a partir de teóricos e teorias consagradas em seus respectivos meios.

Já a Psicanálise pode ser exercida por quem não é psicólogo, mas aí existe um percurso longo e contínuo, dentro de uma instituição reconhecida, além de um rigor ético, para que uma pessoa se denomine psicanalista.

Nas faculdades de Psicologia, a Psicanálise é apresentada como uma das abordagens e aprofundada, como as demais teorias, até certo ponto. Os alunos escolhem suas abordagens em determinado momento do curso, e aqueles que optam pela Psicanálise – o estudo do inconsciente – é porque compreenderam que ali residem aspectos de nossa história que, sem nos darmos conta, conduzem o modo como vivemos, decisões que tomamos e tudo o que se desenrola a partir do que está nesse lugar “esquecido”, mas incrivelmente atuante.

Então, se faz necessário para este recém-formado psicólogo traçar um percurso de estudos que será infindável. Afinal, quem segue a abordagem psicanalítica sabe claramente que a prática desse tipo de psicoterapia pressupõe um tripé, que é a ética psicanalítica citada acima e que deve ser seguida à risca tanto por psicólogos dessa abordagem quanto pelos psicanalistas de instituições: o estudo consistente, a supervisão de casos com seus pares e a própria análise em percurso permanente.

É por conta dessa ética própria da Psicanálise que ela segue com seu tronco forte, tendo sido, desde Freud, revista, ampliada (por outros teóricos pós-freudianos) e atualizada através de grupos de estudos, produções acadêmicas e trabalhos em instituições reconhecidas. Afinal, o sujeito dos anos 1900 não é o mesmo de agora, e trabalhar para que ele compreenda sua singularidade em sua própria história passa pela constituição de seus laços, ontem e hoje, e dentro da complexidade dos nossos tempos.

Penso que é necessário que o paciente, em certo momento, seja esclarecido sobre essa trilha que conduz o pensamento de seu psicólogo, não como explicação teórica, mas pelo alinhamento das subjetividades (paciente e analista) para que esse percurso seja frutífero. E para quem não sabe se a Psicanálise serve para si e seus anseios, sugiro que termine este texto e sinta. A psicanálise, afinal, é para quem?

 

Para quem sabe que está no mundo apenas de passagem, mas não se contenta em apenas vislumbrar a paisagem. Para quem se atenta ao que sente em profundidade, e quem não sabe nomear sua dificuldade. Para quem se controla para evitar sentimentos, e caminha a passos rígidos e pesados em muitos momentos. Para quem não resiste a transbordamentos sob o chuveiro, e quem extravasa no trabalho, exercício, cigarro ou brigadeiro. Para quem chora lágrimas de riso, mágoa, cólera ou desamparo, lidando coma gangorra que é a vida desde o átomo. Para quem se cansa de oscilar, e para quem “mudar” é sinônimo de desesperar. Para quem projeta no filho seu desejo, e para quem o desejo é o outro desejar. Para quem se esconde no sorriso, e quem se esqueceu como brincar. Para quem tira proveito do mar, e quem não se permite desligar. Quem ama muito e sem parar, e quem escolhe espaçar, afastar, esperar. Para quem não tem resposta pras questões fundamentais, e quem não sabe o que deveria se questionar. Para quem sente que pode alcançar e vai, mas ao chegar encara estranho pesar. Para quem duvida de si a ponto de culpar terceiros, e quem acolhe culpa projetada, identificada com tal parceiro. Para quem corre tanto que se perde em mil tarefas, e quem desperdiça tempo anestesiado em tanta tela. Para quem necessita de medicamento para se integrar, e quem dele quer se autonomizar. Para quem precisa se dar conta de que da conta não se corre. E quem dá conta de tanto que não cuida de si mesmo, e encara a morte. Para quem repara e quem precisa de reparo – no sentido de conserto e de cuidado. Para quem a angústia do que viveu retorna, e mora sob traumas, repetições e medos. Para quem tem dúvidas demais que paralisa, certezas demais que desanima; desânimos que submergem, subterfúgios que adoecem. Para quem não se conforma e os conformados incomodados. Para quem vive um luto e não quer encontrar a saída. Para quem não foi amado e repete relações de falta, e quem foi tão sugado pelo amor que se perdeu no vazio. Para quem precisa encarar ressentimentos, covardia, embotamentos e fraturas psíquicas, e se aliviar sabendo que, a partir de agora, é preciso se conectar. É pela fala, a associação livre, um presente de Freud para todos, que a Psicanálse opera, assim como pela transferência ao analista – que ocupa um lugar de não saber, contemplar e ajudar a relacionar o que se lança também sobre ele. É um trabalho, método, técnica que exige profundo respeito, nenhum julgamento. Cada sujeito é inteiramente único, e a beleza de não ser enquadrado, mas reconhecido como potente e singular é o maior presente que a Psicanálise pode nos dar.

 

TATIANA ROSA é psicóloga, pós-graduanda em psicoterapia psicanalítica; pedagoga e jornalista. E-mail: rosa.ta@gmail.com , insta: @tati_psico. 11 98367-9733


"Adolescência" DÓI

 



“É preciso uma aldeia para educar uma criança”. É o que diz o belo e famoso provérbio africano, disseminado por todos os cantos quando o assunto é educação, filhos, escola, sociedade. Porém, também é preciso uma aldeia para destruir uma criança. Foi numa roda de conversa com psicólogos e psicanalistas sobre a série “Adolescência” que ouvi a frase, e inevitavelmente a ficha caiu: sim, todos temos responsabilidade sobre as nossas crianças. E, apesar do esforço, estamos falhando. A série da Netflix que já é uma das mais vistas da história da plataforma não se tornou viral à toa.

Muitos pais e mães se viram nos rostos, emoções e dores dos pais de Jamie, o garoto de 13 anos acusado de matar uma colega de escola da mesma idade a facadas. Afinal, a família retratada é típica, classe média, estruturada, pai empreendedor que trabalha para ganhar mais fora do horário de expediente; mãe dedicada que nada deixa faltar ou de providenciar; irmã adolescente, 17, sensível, obediente, tímida, inteligente. Todos são e estão por todos neste núcleo, mas Jamie escapa e ninguém se dá conta para onde. Afinal, ele segue ali, em seu quarto, “protegido”, de fones de ouvido e olhando para a tela de seu computador.

Em pleno início de uma fase fundamental da constituição psíquica, especialmente sexual – a transição da latente infância para a pulsional adolescência – o garoto Jamie se perde em seus próprios conflitos ligados à sexualidade, sem cogitar conversar sobre eles com nenhuma pessoa, e ao mesmo tempo tentando se encaixar e encontrar sua turma, sua identidade e, principalmente, validação (em um ponto tenso da conversa com a psicóloga, Jamie grita: você me acha bonito? Você gosta de mim?).

Nota-se que a família não conta com uma rede com quem possa dividir, falar, divertir-se. O núcleo é solitário e um se apega ao outro com o que cada um tem a dar. É uma família funcional – mas que carrega traumas e solidões não elaboradas em suas histórias. A mãe não se dá com seus pais; o pai é ressentido com o seu, que lhe batia e nunca o validou nem mesmo em seu aniversário de 50 anos. O passado deixou marcas nesses pais que dão o seu melhor, com disposição para fazerem diferente do que foi feito com eles, mas também estão perdidos buscando um passado imaginário em um mundo transformado e desconhecido – por onde Jamie circula livremente.  

Nas redes sociais era por onde o mundo dele se movia. Pelo Instagram, Jamie se comunicava com colegas da escola, inclusive com a garota assassinada, que havia sido exposta a toda a escola pelo ex-namorado que divulgou fotos suas nuas. Jamie e a garota não eram amigos, presencialmente nem se falavam. Mas quando Jamie tentou se aproximar dela aproveitando sua vulnerabilidade devido ao vazamento das fotos, ela iniciou um bullying contra ele na rede social, sugerindo que Jamie seria incel – celibatário involuntário, consequência por não ser popular ou ter atributos esperados pelas garotas. Ele, que já estava se identificando com posicionamentos machistas e misóginos nas “panelas” virtuais dos incels e red pills, a chamou para ir ao parque. Ela deu um fora nele. Ele lhe deu sete facadas.

Sobre esse mundo virtual que coopta mentes e subjetividades de crianças e jovens, a escola também não ofereceu espaço de diálogo. Esta, que deveria ser um braço fundamental da aldeia, está no exato oposto do que significa apoio, acolhimento, diálogo, empatia ou disciplina. A instituição escolar no filme remete à carceragem: palavras de ordem e ameaças proferidas pelos adultos; provocações ecoadas nas respostas dos alunos aos educadores. Professores não se implicam e o bullying é parte da rotina, não dita em casa. No dia seguinte à morte violenta, nenhuma fala de acolhimento. Nenhuma escuta ou chance de simbolizarem o trauma. Nenhum ato de luto. A escola segue caótica.

Apesar da ficção, muito bem conduzida em planos sequências que intensificam a experiência de assisti-la, a série é o espelho do mundo real. A ficção levou ao extremo, e a realidade não precisa chegar a esse ponto para chocar e fazer a sociedade despertar.

As crianças que estão se tornando adolescentes e os adolescentes que estão caminhando para a adultez precisam do laço social como base – e é também por este laço que eles criam seus sintomas. Em casa, apesar de haver amor, Jamie não encontrou espaço de diálogo, tendo como referência a masculinidade contida de sentimentos vista em seu pai, que desejava um filho que jogasse futebol ou lutasse boxe. Jamie, especialista em fugir da Educação Física, gostava de desenhar. Outras famílias que compõem a trama também entregam a total desconexão entre os sinais que os jovens dão e a ignorância dos pais sobre o que está acontecendo com eles.

As múltiplas solidões e perdas da adolescência integram, mas não determinam esta fase. Os jovens desejam dar este lugar a conexões. Se não forem as que a aldeia toda deveria prover, serão as redes sociais a fazer este papel.

Óbvio que elas já fazem parte e não deixarão de fazer na vida dos adolescentes. Porém, o perigo hoje é iminente: sem regulamentação, as redes sociais e suas donas, as big techs, seguem despejando conteúdos duvidosos e perigosos nas telas de nossos filhos, sobrinhos, netos, alunos, vizinhos. Para elas, quanto mais engajamento e manipulação, mais lucro – não importa se os meninos estão sendo contaminados por ódios e diferenças, tornando-se validados pela violência, e as meninas, levadas à busca por aprovação por uma suposta beleza, gerando transtornos alimentares, depressão e automutilações.

Que cada um, ao entender seu papel na complexidade dessa aldeia (sociedade), busque repensar. No modelo econômico que vivemos, a exaustão do trabalho impede a qualidade do diálogo – o tempo e o dinheiro são dragados a fim de dar conta tanto do necessário quanto da imposição do consumo. Na escola, crianças e adolescentes precisam ser vistas como seres em formação que precisam de referências, orientações, afeto e acolhimento sob condições mútuas e direitos. Que haja empatia e olhar cuidadoso entre amigos e vizinhos. Possibilidades de experiências, vivências, trocas e todo o arcabouço proveniente do conviver, com respeito aos gostos e desejos próprios de cada ser em sua autodescoberta.  

Em meio a essa luta, passos em direção ao reconhecimento das singularidades e das emoções desses sujeitos, ainda vulneráveis, são a base para a construção de um laço social que seja, ao menos, suficiente – família, escola, sociedade. Isso só será possível com a força afetiva e efetiva de uma verdadeira aldeia, onde todos também revejam a si próprios a partir dessa fase crucial da vida, que é a adolescência. 



TATIANA ROSA é psicóloga, pós-graduanda em psicoterapia psicanalítica; pedagoga e jornalista. E-mail: rosa.ta@gmail.com , insta: @tati_psico. 11 98367-9733



18 abril, 2025

O VALOR da perda



Perdas são inevitáveis, mas ninguém quer. Ninguém quer perder uma partida seja lá do que for. Do palitinho à final do Brasileiro. Mas estas, ao menos, não nos afetam mais do que poucos segundos, minutos, algumas horas de tormentos alheios... Passageiro. O sono é o mesmo, a vida segue inabalável.

Perder para a morte repentina ou para uma doença progressiva são outros quinhentos multiplicados por infinito. É bem no meio dessa perda que mora a angústia, sentida como um vazio impreenchível e por onde perambulam saudade, arrependimento, gratidão, dor. Dor que exige uma nova condição não requerida, que gera revolta e invoca a aceitação da imposição de um fato sobre a vida. Fatos que afetam sem pedir licença. Nada fácil perder um amor e não se perder junto. 

As aparentemente pequenas, mas tão significativas perdas que experimentamos ao longo da existência nos ajudam a passar pelas demais, essas grandes e marcantes, que encerram fases e iniciam outras, que passam a ditar calendários em antes e depois. 

Saber que as perdas são constitutivas de todo ser humano significa que somos feitos delas. 

Como aquela que sente o bebê quando a mãe se ausenta levando consigo o seio que o nutre, acalenta, integra; mais tarde, a perda que desvencilha a criança da figura materna pelo reconhecimento de uma terceira (a paterna, ou quem faça essa função no papel de terceiro), que a ensina a perder onipotências e a fazer escolhas; perdas como a da infância para a adolescência – esta tomada por si só, em essência, de perdas tamanhas (do corpo, da voz e da fala, da turma, dos amigos de outra escola, da paixão não correspondida, da heroicidade dos pais).

O manejo da vida é em grande medida o manejo de perdas. 

O bebê que, amparado, soube suportar uma perda (ausência), assim como a criança que, tomada de conflitos subjetivos, conquistou o olhar para si e se reconheceu uma sem os pais, e o adolescente que mesmo se revoltando, enfrentando ou silenciando soube que não estava sozinho e teve novamente o amparo de que necessitou para desenvolver um olhar genuíno para si, é a pessoa que, hoje, quando perde, lida – sem se perder. A percepção, a presença, a fala e a escuta dos pais (ou de quem cuida) frente às perdas constitutivas do bebê, da criança e do adolescente, sujeitos altamente vulneráveis, irá ditar como se dará a forma de lidar com as perdas seguintes – das pequenas às imensuráveis. 

 Afinal, é a vida quem ganha todos os dias, até a morte chegar. Esta, sim, vencedora soberana sobre a vida. 

 Mas nós, sim. Perdemos, e muito, o tempo todo, temporária ou permanentemente. O ônibus, o tempo, a convivência. O amor que esvaziou, a taça que trincou, a memória que apagou. Perdemos num momento a filha adolescente que foi morar longe para estudar; o pai idoso cuja fortaleza se esvai e o corpo não responde à sua consciência; o amigo de longa data que, num súbito, perdeu o controle de sua moto. A paciência, os óculos, a chance de dizer aquilo que ficou guardado. Quando fazemos escolhas. Quando abrimos mão. Quando deixamos ir. Perdemos amigos e companhia, perdemos a mãe, o pai, os avós, o emprego que amávamos. Perdemos aos poucos quem vamos esquecendo. Perdemos tempo, viço e até alegria (que seja por algum momento). E o controle? Não o perdemos, porque não o temos. 

Mas da matéria da perda se faz novos sonhos, e com eles, novas possibilidades.

Só se reconstrói quem, ao (se) perder, se desconstruiu. Só se busca recuperar algo quem reconhece aquilo que perdeu. Só melhora quem assume erros e perdas. A capacidade de sublimar as perdas em novos espaços – internos e externos – a serem descobertos vem da habilidade de amar, por ter sido amado. E de aceitar ser amado, por saber manifestar seu amor. É o amor, aquele primordial, em forma de amparo e cuidado, na medida entre a presença e a ausência, entre o ter e o faltar, entre o ser e o não saber, que, embora não alivie as dores das perdas, tantas e todas, rasas ou profundas, não nos deixa nos perder de nossa própria vida – e nos faz seguir em frente. 


TATIANA ROSA é psicóloga, pós-graduanda em clínica psicanalítica; pedagoga e jornalista. 
E-mail: rosa.ta@gmail.com  -  insta: @tati_psico